terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Nicolas Delerive (1755-1818)

Pescadores fazendo comida na praia, effeito de luar. Pintado sobre cartão, escola franceza moderna [...] (1)

Nicolas Delerive (1755-1818), Paisagem, efeito de luar.
Imagem: J. Andrade

Descendia de antigos Hespanhoes, que se estabelecêrão em Lilla [Lille], aonde elle nasceo em 1755. Alli mesmo começou a estudar a Arte com Heinsius retratista Alemão, desenhando o nú na Academia; mas em 76 desejando melhores estudos sahio da Patria, e esteve dous annos, em Artois com o Conde de Neuville, cançou-se pouco julgando-se, dizia elle mesmo, bastante sábio, mas quando chegou á Paris fez de si bem diverso conceito. 

Tendo-se inclinado ao genero das batalhas, e ao das bambochatas, frequentou a escóla de Casanova, Pintor Italiano destes Objectos, e sahia ás praças, e aos campos a desenhar, e a pintar arvores, animaes, paizanos, etc: 

e Luiz Wateau Director da Academia de Lilla (Primo do famoso Antonio Wateau), o recebeu como Academico de merito em composições de combates: casou, e esteve alli até á revoluçâo de 1790 [1789].

Nicolas-Louis-Albert Delerive (Lille 1755-1818 Lisbon).
Imagem: invaluable

Em 92 veio a Lisboa donde 5 annos depois voltou a Hespanha, deixando cá a mulher; alli retratou em corpos inteiros, o Duque del Infantado, e a Marqueza de Santa Cruz, que pintava com magisterio, e protegia efficazmente os Artistas. Tornou a esta Côrte em 1800.

Delerive, A Feira das Bestas (à esquerda o Passeio Público, Conv. da Encarnação e S. Luís dos Franceses), 1792.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Retratou o Principe Regente em meio, e inteiro corpo. Tres annos depois, por intervenção de João Diogo de Barros, obteve huma pensão he 600$ réis para pintar no Picadeiro Regio todos os objectos de picaria [painéis da sanca].

Museu Nacional dos Coches no antigo Picadeiro Real. Aspecto geral da sanca, painéis com pinturas de Delerive.
Imagem: congeladas no tempo

Retratou ElRei em grande a cavallo, mas o seu talento proprio era para cousas pequenas. 

Em 1809 comprou na feira por quatro moedas huma taboa da Annunciação de Pintor Portuguez antigo, imitador de Gaspar Dias. Não se sabe como este quadro passou por hum Rafael, he certo porém que hum General Inglez lhe deo por elle o equivalente de 20$ cruzados.

Nicolas Delerive: The Comte de Noviron Governor of Lisbon; Mr Petrie Commissary of Accounts; Senhor Setar, Portugese Commissary; General Brigadier general Leighton.
Imagem: the saleroom

Morreo em Lisboa em Junho de 1818. (2) 

O quadro [de Nicolas Delerive] que retrata a Feira da Ladra na Praça da Alegria será então datável de entre 1809 (introdução da feira naquela localização) a 1818 (morte do pintor). Esta pintura pertenceu aoVisconde de Chanceleiros, passando depois para a propriedade do Conde dos Olivais e Penha Longa.

Lisboa, Feira da Ladra na Praça da Alegria, Nicolas Delarive, aspecto na década de 1810.
Imagem: MNAA

Foi adquirido pelo Museu Nacional de Arte Antiga em 1931 a E. H. Moser. Esta pintura dá-nos, no entanto, um precioso testemunho da fisionomia da Praça da Alegriado início do século XIX. Nela podemos ver as várias tipologias de edifícios que ali coabitavam.

Em primeiro lugar, temos um prédio pombalino, à esquerda no quadro, feito de acordo comos desenhos fornecidos pela Inspecção-geral do Plano para a Reedificação da Cidade e talcomo é referido pela documentação que revelámos. Os prédios pombalinos na Praça da Alegria foram projectados com lojas no rés-do-chão, habitação no primeiro piso e nas águas furtadas.

Cada prédio devia ter entre seis e sete janelas no piso superior. No prédio representado no quadro foi acrescentado um terceiro piso, permitido pela quedade Pombal (1777) e consequência perda de importância da Inspecção-geral do Plano para a Reedificação da Cidade.

Esta substituição das mansardas originais por um novo piso aconteceu também na Baixa na década de 1780 e início de 1790. É provável que a alteração neste prédio da Praça da Alegria fosse coincidente com esse período.

Nicolas Delerive, Mercado da Praça da Figueira.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A segunda tipologia que se encontra retratada no quadro de Nicolas Delerive são asbarracas construídas ilegalmente pelos lisboetas que não tinham posses para arrendar um andar. 

Estão fronteiras ao prédio pombalino e apresentam apenas um piso térreo, sendo construídas com madeiras de forma desorganizada e desconexa.

Finalmente, a terceira tipologia é aquela na qual se insere o Palácio Azul. Trata-se de umedifício projectado com um alçado mais monumental que o anónimo prédio pombalino, prevendo de origem um terceiro piso, com molduras de pedra decoradas e animação na fachada comparamentos recuados.

É um edifício que se assume como um palácio numa zona destinada àpequena burguesia, algo que ia contra os ditames de Pombal que impunha o nivelamento arquitectónico e funcional dos novos bairros lisboetas.

As igrejas, palácios e conventos sequisessem permanecer nos bairros pombalinos teriam de passar despercebidos pelo exterior. A própria cor da fachada, que lhe concedeu o nome pelo qual ficou conhecido (porque era casoúnico em Lisboa), também pretendia ser um manifesto contra o ocre obrigatório das casas pombalinas.

O Palácio Azul ainda hoje existe, estando nele instalada a Esquadra de Polícia da Praça daAlegria. Este imóvel foi construído em 1796 por D. Álvaro de Távora, conde de São Miguel, que casou com D. Luísa de Pilar e Noronha, filha dos condes dos Arcos.

Em 1832 foi quartel do Estado Maior General e no ano seguinte sede dos Conselhos da Guerra. Em 1840, o palácio pertencia ao Barão de Almeirim, pai de Anselmo Braamcamp Freire que aí nasceu em 1845. (2)

Nicolas Delerive, algumas cenas de actividades e género: o feirante, o peditório para a sopa dos presos, o sapateiro e o barbeiro.
Imagem: artnet & the saleroom

Nicolas Delerive salienta-se como um excelente retratista da sociedade e dos costumes lisboetas como comprovam uma série de pequenos quadros sobre madeira representando algumas actividades oficinais e profissões como por exemplo "a assadora de castanhas" (inv.675/1), "o padeiro" (inv.675/2), "o amolador" (inv.776), "o garrafeiro" (inv.777) e "o feirante do mondi nuovi" (inv.788). (3)

Nicolas Delerive, algumas cenas de actividades e género: a assadora de castanhas, a lanterna mágica, vendedor de vinho e frades num bordel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa & the saleroom

Esta pintura [Embarque de D. João, Principe Regente de Portugal, para o Brasil em 27 Novembro 1807] está directamente relacionada com uma gravura de Francesco Bartolozzi (Arquivo Histórico-Militar), segundo desenho de Henri l' Evêque, intitulada "L' Embarquement du Prince Regent de Portugal au Quai de Belem, avec toute la Famille Royale, le 27 Novembre 1807 a 11 heures du Matin".

Nicolas Delarive, Embarque [partida, fuga] de D. João, Principe Regente de Portugal, para o Brasil em 27 Novembro 1807.
Imagem: Não foi no grito

Desta última conhecem-se tanto as provas originais como a composição final, posterior à alteração da chapa. As primeiras, não assinadas e legendadas em francês, fazem parte dos espólios da Biblioteca Nacional de Lisboa, Gabinete de Estudos Olisiponenses e Museu Nacional de Arte Antiga.

Embarque do principe regente de Portugal com toda a Familia Real em 27 de novembro às 11 horas da manhã [1807],
des. Henri L' Évêque (1769-1832), grav. Francesco Bartolozzi (1728-1815).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Passada a litografia e já com a legenda traduzida para português, existem vários exemplares desta gravura, assinadas por Constantino de Fontes e pelos indecifráveis "D." e "NC". Quanto à ligação entre a citada gravura e o quadro do M.N.C.  as opiniões divergem, havendo autores que preconizam a anterioridade da obra pictórica (Augusto Cardoso Pinto), enquanto outros - caso de S. Herstal - defendem a tese oposta, segundo a qual a pintura a óleo seria uma réplica fiel da obra de Bartolozzi.

S. A. R. o Principe Regente de Portugal e toda a Familia Real, embarcando p.a o Brazil no Cáes de Belem,
Henri L' Évêque
(1769-1832), Francesco Bartolozzi (1728-1815).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Este último avança ainda a hipótese de a tela atribuída a Nicolas Delerive ser um estudo preparatório para um outro quadro a óleo, anónimo, pertencente ao Palácio Itamaraty, Brasil.

Para além do quadro em apreço, subordinadas ao mesmo tema existem outras telas igualmente atribuídas ao pintor francês, que integram as colecções do Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo e Silva, Lisboa, e do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, sendo esta uma mera ampliação da primeira. Cite-se ainda uma quarta reprodução anónima, de acentuado cariz popular, pertencente à colecção da José Mariano de Camargo Aranha. 

Departure of H.R.H. the Prince Regent of Portugal for the Brazils, Henry L Evêque, F. Bartollozzi.
(Campaigns of the British Army in Portugal, London, 1812)
Imagem: Wikipédia

A profusão de obras alusivas à partida da Família Real para o Brasil deve ser entendida à luz dos acontecimentos da época, quando a "fuga" era ainda entendida como uma excelente estratégia nacional pois, caso a metrópole fosse loteada pelo invasor francês, poderia sobreviver do outro lado do Atlântico.

Embarque da Família Real Portuguesa para o Brasil.jpg
Imagem: Estórias da História

Do Príncipe Regente — figura querida do povo, agora elevada à categoria de herói — e da restante Família, todos queriam guardar uma grata recordação em vésperas das invasões napoleónicas, marco efectivo da abertura de um novo século.

Nicolas Delerive, Retrato equestre de D. João VI, entre 1803 e 1807.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O quadro [Embarque de D. João, Principe Regente de Portugal, para o Brasil em 27 Novembro 1807] do M.N.C. [Museu Nacional dos Coches] foi depositado no Museu das Janelas Verdes [Museu Nacional de Arte Antiga] em 1935, tendo sido devolvido ao local de proveniência em data incerta. (4)


(1) A dispersão dos quadros da herança do rei D. Fernando [ref. 90]
(2) Cirilo Volkmar Machado, Collecção de memórias, relativas às vidas dos pintores, e escultores, architetos, e gravadores portuguezes, e dos estrangeiros, que estiverão em Portugal..., pág. 224, Lisboa, Victorino Rodrigues da Silva, 1823
(3) João Miguel Simões, A Casa das Varandas da Praça da Alegria
(4) Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva
(5) MatrizNet



Referências:
Nicolas Delerive (google search)
Nicolas Delerive (1755-1818) também conhecido como [aka]: Nicolas-Louis-Albert Delerive, Nicolas Delérive, Nicoláo Luiz Alberto de La Riva, Delarive etc.

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