quarta-feira, 22 de março de 2017

Leão d'Ouro (1905) nova sala

Já agora ficará celebre na historia da arte em Portugal pelos tempos fóra, este titulo opulento com que o sr. Antonio Monteiro baptisou a sua cervejaria ou restaurante da rua do Príncipe, ha bons vinte annos passados; e não só a cervejaria, mas ainda o grupo de artistas, que menos o ouro, tomou aquella denominação, ou antes o publico lh'a deu, por ali se reunirem todas as noites ao cavaco e a conspirarem para a grande revolução que levaram a cabo na arte nacional, com a primeira exposição de pintura moderna, tendo á frente Silva Porto, o mestre, o revolucionario... da palleta, que tão cedo havia de deixar envolta nos crepes da morte.

Poente com pombos, Moura Girão, 1905.
Imagem: Provocando uma teima

Entretanto a sua obra ficou e os sobreviventes continuaram na brécha, embora um ou outro tenha resvalado tambem para o tumulo, como Leandro Braga, Raphael Bordallo, e não nos lembra agora se mais algum.

Mas não é de mortos que vimos faltar, senão de vivos. dos que ainda restão d'esse glorioso "Grupo do Leão", cuja vitalidade se manifesta em obras e progressos que não deixarão apagar sua fama.

Agora, como ha vinte annos, são os artistas d'esse grupo, que vem decorar com seus quadros uma nova sala do restaurante "Leão d'Ouro". Ha vinte annos foram os artistas que tomaram a iniciativa de decorarem a primeira sala d'aquelle restaurante e, então offereceram os seus quadros, onde se encontra a grande tela de Columbano em que figuram todos os do grupo á mesa de lauta ceia. 

O Grupo do Leão, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Representados, da esquerda para a direita: em fundo, João Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, criado Manuel, Columbano, criado António, Braz Martins; sentados, em segundo plano, Manuel Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro; em primeiro plano, José Malhoa, Moura Girão, João Rodrigues Vieira.
Imagem: MNAC

Hoje foi o sr. Antonio Monteiro que bizarra e generosamente tomou a iniciativa de convidar os artistas para decorarem a nova sala, dando assim frisante prova da muita consideração por aquelles que tornaram o seu restaurante celebre fazendo ali, por assim dizer, um centro artístico. 

António Monteiro, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sr. Antonio Monteiro manifestou o desejo que a nova sala fosse decorada com quadros pintados pelos artistas sobreviventes do "Grupo do Leão", e para esse fim pediu ao sr. João Vaz para se entender com os seus collegas sobre a melhor fórma de realisar seu proposito.

João Vaz convidou então Columbano Bordallo Pinheiro, José Malhôa, Antonio Ramalho (que ao tempo da decoração da primeira sala estava ausente no estrangeiro), Moura Gyrão, D. Maria Augusta B. Pinheiro e Ribeiro Christino a apresentarem as condições de cada trabalho de pintura: o mesmo artista projectou a divisão dos espaços a decorar que, pelas condições constructivas da sala tinham de ser de diversos formatos; os apainelados e emolduramentos em, que as pinturas seriam collocadas.

Columbano, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Foi dado como maximo praso de tempo para a execução da tarefa, seis semanas, para se poder reabrir o "Leão d'Ouro" em sabbado d'Alleluia, 22 de abril de 1905.

José Malhoa, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

N'essa data foi pontualmente feita a reabertura com tudo concluído. Aproveitou-se o encerramento do restaurante, para ser renovada a primeira sala, limparem-se os antigos quadros, e renovaram-se as molduras, ficando a sala muito mais clara.

Maria Augusta Bordalo Pinheiro, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Contrasta muito a nova sala pela luminosidade e vivacidade dos quadros emoldurados a branco e oiro nos filetes; a base dos arcos da sala tem golphinhos dourados e no alto 6 grandes pratos decorativos da fabrica de faianças das Caldas da Rainha recorda Raphael Bordallo Pinheiro, o saudoso ceramista e caricaturista.

A nova sala do Leão d'Ouro — decorada pelos artistas do Grupo do Leão, Ribeiro Christino, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os quadros ou "panneaux" decorativos são seis, divididos cada um em tryptico; as composições seguem porém como se tosse um quadro só, excepto a de Malhôa que contem tres assumptos diversos sob o titulo de apotheose da lagosta; o do meio representa, n'um rico salão iluminado tendo colgaduras e flôres, uma grande mesa de banquete sobre a qual de pé um menino de monoculo e charuto, rodeado de outras creanças, algumas com chapeus de senhora, brindam com champagne, o prato da lagosta, trazido por ares e ventos por outros bébés vestidos de cosinheiros com aventaes e barretes brancos.

Apoteose da lagosta, José Malhoa, 1905.
Imagem: Nuno Saldanha, José Vital Branco Malhoa

Na esquerda um outro garotete, feito creado, transporta iguarias. Na direita, como n'um terraço ao ar livre, de noite, um petiz dorme encostado a uma mesa redonda, emquanto outro debruçado sobre a balaustrada vae alijando para fora a demasiada refeição.

Fronteiro está o quadro de Columbano, tambem com dois pequenitos, um dos quaes com soberbo gesto levanta um rico panno de velludo carmezim descobrindo uma grande mesa com comestíveis, taes como: aboboras, limões, maçãs, um pato e cabrito já mortos.

Apoteose aos frutos, Columbano, 1905.
Imagem: Margarida Elias, Columbano e as Caldas da Rainha

A seguir a este e do mesmo lado, João Vaz representa o Lavradio cheio de sol espelhando-se no tranquilo Tejo de cristal, fragatas com velas soltas reflectem-se n'agua por sobre a qual bandos de gaivotas revôam.

João Vaz, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

O quadro produzido por Moura Gyrão [v. acima] está defronte do de João Vaz; n'um suave poente destaca-se uma cortina de alvenaria tendo estendido um belo chaile de seda amarela sobre o qual dois pombos arrulham; ao longo pinheiros, plantas no primeiro plano e á direita uma florida olaia alindam a paysagem.

Moura Girão, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

A seguir a este, representa Ribeiro Christiano os campos do Liz alteando-se ao centro o imponente castello historico de Leiria, que tudo se divisa para além do choupal que emoldura o rio, cantado por Rodrigues Lobo; 

Campos do Liz (detalhe), Ribeiro Christino, 1905.
Imagem: Provocando uma teima

á esquerda braceja os ramos d'um carvalho tendo em volta lyrios, margaritas, papoilas e outras flôres campesinas; á direita, n'um monte cheio de urze florida, alveja um casal e uma seara, por detraz os pinheiros coroam o monte, ao segundo plano, uma leiriôa com uma pequenita, transporta fructas n'um pocesso á cabeça.

Ribeiro Cristino, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Em face Antonio Ramalho representa uma parte da matta do Bussaco com os altos cedros e multidão de arbustos, elevando-se no centro o grande palacio neo-manuelino;

Matta do Bussaco, António Ramalho, 1905.
Imagem: Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho...

nos ares uma figura feminina alada espalha flôres sobre a matta.

António Ramalho, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Na parede do fundo em duas tiras apaineladas D. Maria Augusta Pordallo Pinheiro pintou dois delicados festões de rosas brancas e vermelhas. 

Festão de rosas, Maria Augusta Bordallo Pinheiro, 1905.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Um lambri imitando couro lavrado reveste a parte inferior da sala fazendo fundo ao mobiliario. Tal é no seu conjuncto a nova sala artistica em que, parece remoçou o "Grupo do Leão".


(1) Occidente n.° 951, 30 de maio de 1905

Leitura relacionada:
Os quadros do "Leão d'Ouro", Diário de Lisboa, 7 de abril de 1939
Catalogo Leilao 150 Palacio do Correio Velho, realizado a 7 de Junho de 2005
Nuno Saldanha, Artistas e Espaços de Sociabilidade no século XIX, O “Leão d’Ouro”... (1885-1905)
Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra
Provocando uma teima
Margarida Elias, O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro...
Margarida Elias, Columbano e as Caldas da Rainha
Clara Moura Soares, A Galeria de Pintura do Restaurante "Leão de Ouro":
Percursos de uma Colecção, ARTIS,
Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 6, 2007
Restos de Colecção

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