segunda-feira, 15 de maio de 2017

Adeus, Lisboa

Vou-me até à Outra Banda
no barquinho da carreira.
Faz que anda mas não anda;
parece de brincadeira.

Lisboa, Estação Sul e Sueste, Alberto Sousa (1880-1961), 1910.
Imagem: Museu de Arte Contemporânea

Planta-se o homem no leme.
Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito;
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica
como um boneco de corda.
Nem sei se vai ou se fica.
Só se vê que tremelica
e oscila de borda a borda.

Lisboa, Ponte dos Vapores, estudo para leque, Veríssimos Amigos, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Chapas de sol, coruscantes
como lâminas de espadas,
fendem as águas rolantes
esparrinhando flamejantes
lantejoulas nacaradas.
Sob o dourado chuveiro,
o barquinho terno e mole,
vai-se afastando, ronceiro,
na peugada do Sol.

Vapor da carreira de Cacilhas, 1890, Óleo, Alfredo Keil
Imagem: Casario do Ginjal



A cada volta das pás
moendo as águas vizinhas,
nos remoinhos que faz,
nos salpicos que me traz
e me enchem de camarinhas,
há fagulhas rutilantes,
esquírolas de marcassites,
polimentos de pirites,
clivagens de diamantes,

Embarcação de passageiros das carreiras do rio Tejo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Numa hipnose coletiva,
como um friso de embruxados,
ao longe os olhos cravados
em transe de expectativa,
todos juntos, na amurada,
numa sonolência de ópio,
vemos, na tarde pasmada,
Lisboa televisada
num vasto cinemascópio.
O sol e a água conspiram
num conluio de beleza,
de elixires que se evadiram
de feiticeira represa.
Fulva, no céu incendido,
em compostura de pose,
a cidade é colorido
cenário de apoteose.
Há lencinhos agitados
nos olhos de todos nós,
engulhos de namorados,
embargamentos na voz.
Nesta quermesse do ar,
neste festival de tons,
quem se atreve a acreditar
que os homens não sejam bons?

Barcos junto à torre do Bugio, Alfredo Keil (1850 - 1907).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Adeus, adeus, ribeirinha
cidade dos calafates,
rosicler de água-marinha,
pedra de muitos quilates.
Iça as velas, marinheiro,
com destino a Calecu.
Oh que ventinho rasteiro!
Que mar tão cheio e tão nu!
Ó da gávea! Põe-te alerta!
Tem tento nos areais.
Cá vou eu à descoberta 
das índias Orientais.
Não tenho medo de nada,
receio de coisa nenhuma.

Barco a vapor a atracar em Cacilhas.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A vida é leve e arrendada
como esta réstea de espuma.
Toda a gente é séria e é boa!
Não existem homens maus!
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa!
Adeus, Ribeira das Naus!
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus! (1)


(1) António Gedeão, cf. Rómulo de Carvalho, António é o meu nome

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