sábado, 26 de agosto de 2017

Palácio do Corpo Santo

A origem deste nome está no culto de S. Telmo, ou seja de S. Pedro Gonçalves Telmo, padroeiro dos pescadores, à qual os devotos chamavam Corpo Santo; a imagem venerava-se numa ermidinha quinhentista de Nossa Senhora da Graça que ficava no princípio da Travessa do Cotovelo, já na proximidade do largo actual, do lado norte [...]

Esta imagem, aqui horizontalmente invertida, é uma mistificação.
Baseada no original de Dirk Stoop de 1662, "O Palacio do Infante D Pedro em o Corpo Sancto em Lisboa" (v. a próxima imagem), foi, em 1707, invertida e publicada com figuras diferentes do original no primeiro plano e ao fundo, em Les delices de l'Espagne et du Portugal, tomo IV, em 1729 La galerie agréable du monde... ou em Annales d'Espagne et de Portugal, tomo III de Juan Alvares de Colmenar/Pieter Vander Aa.
Amplamente reproduzida e distribuída, durante mais de 80 anos, também a legenda foi adaptada aos acontecimentos que iam decorrendo.
Quando referente ao caso dos Távoras, em 1759, que foi divulgada pretendendo-se como representando o Palácio do Duque de Aveiro que seria depois arrasado.
A presente versão, "Palais du Comte d'Avero  á Lisbonne oú Charles III a été logé", é também um erro, pois Carlos III, de facto, esteve alojado no palácio dos condes de Aveiras, o actual Palácio de Belém.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Corte Real, palácio que foi habitado por El-Rei D. Pedro II, não só quando Infante, e Regente, mas quando já aclamado rei, lhe chamaram os tombadores — da Corte-Real, e com eles alguns autores também, e o próprio povo.

Ou ainda da Corte-Real, em lembrança persistente através os tempos, ainda que provàvelmente já inexplicada, da antiga proprietária, D. Margarida Corte-Real, falecida em 1610, e que tendo casado com o célebre Cristóvão de Moura, Vice-Rei de Portugal por Filipe de Castela, viu levantar-se o magnífico palácio, por determinação de seu marido, nos terrenos que de séculos eram herança de seus avós. (1)

O Palacio do Infante D Pedro em o Corpo Sancto em Lisboa
Gezicht op het paleis van Don Pedro te Lissabon, Dirk Stoop, 1662.
Imagem: Rijksmuseum

Depois da Ribeira das Naus, apparecia-nos, mais ao Poente, o arrogante palácio do Côrte-Real, que o povo chamava, sem saber porquê, "a Côrte-Real".

Compunha-se o palácio de quatro lanços com uma quadra ao meio; flanqueavam-n-o quatro torreões acoruchados, com altas grimpas: dois para a terra, e dois para o Tejo; e d'estes últimos destacavam-se dois compridos eirados, sobranceiros á linha da agua, que lhes vinha beijar o embasamento. No intervallo entre estes eirados, um jardim.

Se não existissem muitas estampas, de que possuo algumas, que nos mostram claramente a forma e ímportância celebre d'esse palacio, bastaria a admiração com que d'elle falam nos falam os centemporaneos, para nos demonstrar quanto era estimada em lisboa aquella bonita peça de architectura fillippina.

Depois de mencionar uma capella que havia n'este largo, e de que vou dentro em pouco tratar, diz o poeta da Relação de 1626:

Junto d'ella logo as casas
de architectura soberba
de Mouras Côrte-Reaes,
de bem Real apparencia.

E ha milhares de fragatas
na praia aqui junto d'ellas,
em que por pouco dinheiro
quem quer no mqr se recreia.

Depois d'esse autor portuguez, oiçamos como fala da casa o viajante francez Monconys em 1628:

"A residência do Marquez de Castello-Rodrigo — diz elle em plena dominação castelhana — é situada á beira do mar, e é das mais magnificas de Lisboa. Tem quatro formosos lanços de edificios flanqueados de torreões, e uns terraços onde se passeia, e que dominam o Tejo."

Como illustração ao texto, denuncio aos estudiosos uma bellisima gravura em cobre assignada por Van Merle, e intitulada "Veüe st Perspective du Palais du frere du Roy de Portugal a Lisbonne". Tenho-a nas minhas collecções. O primeiro plano representa a Ribeira das Naus; ao fundo o vulto imponente do palácio, e muito ao longe as tercenas de Santos. Mais ao longe a barra.

Vue et perspective du palais du frère du Roi de Portugal a Lisbonne, Van Merle/Louis Meunier, 1668.
Imagem: Biblioteca Digital Hispánica

Ir habitar a rainha D. María Francisca no paço da Ribeira, onde habitava também, encarcerado, seu primeiro marido... era repugnante, a ella própria.

Determinou, ao deixar o remanso de Alcântara, ir morar no palácio do Côrte Real (no nosso largo do Corpo Santo), separado do paço da Ribeira apenas pela Ribeira das naus; para o que, deu ordem o Regente a que se construísse um passadiço entre os dois palácios.

Vué du Palais Royal de Lisbonne [Palácio da Ribeira e, em 2.° plano, o do Corpo Santo].
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

"Mora el-Rei D. Pedro n'um palácio particular, por elle comprado no tempo em que ainda era Infante, isto é durante o reinado do senhor D. Affonso VI [engano, anotado por Julio de Castilho].  Fica este palácio á ourela do Tejo; compõe-se de quatro formosos lanços, e flanqueiam-n-o quatro torreões. Tem mais dois eirados, e galerias para passeio ao rés das aguas.


Foi o edifício confiscado ao Marquez de Castello-Rodrigo, por ter este Marquez seguido a parcialidade castelhana ao tempo da revolução. Verdade seja, que, segundo o tratado entre as duas Coroas, todos os seus bens deviam ter-lhe sido restituídos; mas o certo é que ainda esta propriedade lhe não foi entregue.

Vué du Palais du Palai que le Roi du Portugal a achetér.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Chamam-lhe o palácio do Corpo-Santo, por causa da capella que lá existe." [cf. Don Juan Alvares de Colmenar — Annales d'Espagne et de Portugal, tomo III, pag. 268 da ed. de Amsterdam, 1741.] (2)

Pela marca de água do papel, o desenho é da segunda metade do século XVIII donde posterior ao terramoto que arruinou o edifício. A partir deste dado podemos concluir que o alçado e planta estarão ligados a uma tentativa de restaurar o edifício.

Palácio do Corpo Santo ou do Corte Real, andar nobre, 1755-1800.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O alçado mostra o acrescento de um último piso que corresponde às grandes obras do palácio quando passou a habitação oficial do Infante D. Pedro, futuro D. Pedro II.

Palácio do Corpo Santo ou do Corte Real, alçado principal, 1755-1800.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Esta passagem corresponde, por sua vez, à expropriação do edifício aos Marqueses de Castelo Rodrigo após 1640 pelo seu apoio à causa dos Filipes de Espanha. (3)

"O seu palácio, junto ao Paço da Ribeira , teve largos acrescentamentos e adornos consideráveis que mais tarde ali prodigamente realizou o vice-rei de Portugal, valido dos Filipes, D. Cristóvam de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, capitão-donatário da Terceira e S. Jorge, pelo seu casamento com D. Margarida Corte-Real, bisneta de Vasco Anes."

Cristovão de Moura e Távora (1538-1613), Marquês de Castelo Rodrigo.
Quasi seguro de vencer pelo oiro todos os corações [Filipe II de Espanha], mandara ao seu ministro [D. Cristovão de Moura], que alem de alliciar para o seu serviço o comitre [oficial das galés] hespanhol Contreras, que recebia soldo a bordo das galés de Portugal (ajuste que se realisou sem custo), procurasse attrahir os governadores das fortalezas de S. Julião e de Caparica [...] O embaixador, sempre diligente, não se demorou em o satisfazer [...] Caparica dava-lhe pouco cuidado [...] O governador era um dos Tavoras, Ruy Lourenço, seu primo, e de ha muito, asseverava elle, que lhe dera a sua palavra; como porém fosse moço e inexperiente, o ministro promettia chama-lo de novo, e assegurar se da sua deslealdade á pátria, e da sua fidelidade aos interesses castelhanos [v. o contrassenso da iconografia relacionada no apontamento irónico Torre Velha por dom António].
cf. Rebello da Silva, História de Portugal Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1871
Imagem: Santiago Martínez Hernández

"O palácio do marquês, ao Cata-que-farás, a S. Paulo, junto ao cais do veador, entestando com o Paço da Ribeira, em Lisboa, ficou, mercê das obras vultuosas que lhe realizou o Castelo Rodrigo, um dos mais vastos , mais belos e magnificentes edifícios da corte, competindo com as principais casas senhoris da Europa.

Passava ali certo homem conversando com um amigo; e, diz um anexim que "quem faz casa na praça, uns dizem que é alta, outros que é baixa", commentaram, já se vê, a edificação:

— Grande casa! — diz um. — O dono fel-a ou veiu-lhe já seus passados?
— Fel-a — tomou o outro. — Não foi dos seus "passados", seria talvez dos seus "presentes".

Brasão de Castelo Rodrigo, escudo com as armas reais ao revez, dado pelo Rei D. João I em castigo por a vila ter tomado partido por Castela na crise de 1383-1385.
Imagem: Inácio de Vilhena Barbosa, As cidades e villas da monarchia..., 1860

Era uma alusão irónica aos benefícios que o Castelo Rodrigo abundantemente recebia de seu real amo castelhano – porque o marquês, como seu bisavô por afinidade, Vasco Anes Corte-Real, era insaciável em pedir e obter graças régias."

Nesta bela gravura podemos apreciar a sumptuosidade do palácio do Corte-Real, também conhecido pela Corte-Real. Após a restauração da independência de Portugal em 1640, este Palácio, bem como todos os bens de D. Margarida Corte Real e de D. Cristóvão de Moura foram-lhes confiscados. 

Vuë du palais du roy de Portugal, à Lisbonne, Stelzer.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Depois de ter sido moradia de D. Pedro II, que subiu ao trono em 1683 e faleceu a 25 de Maio de 1786, voltou à posse dos descendentes de D. Cristóvão de Moura e de D. Margarida Corte Real, que o venderam a D. Pedro III, tio e marido da Rainha D. Maria I.

The Ribeira Palace before its destruction on 1 November, 1755.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Não foi o terramoto de 1755 que destruiu completamente o Palácio Corte Real, mas sim um voraz incêndio que ocorreu em 1781, consumindo em menos de quatro horas 185 aposentos em que se contavam 18 salas reais, com todo o seu recheio de sumptuoso mobiliário e os quatro majestosos torreões dos cantos. (4)


(1) Revista Municipal n.° 83, Câmara Municipal de Lisboa, 1959
(2) Julio de Castilho, A Ribeira de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893
(3) Fundação Casa Rui Barbosa
(4) Sociedade de Geografia de Lisboa

Informação relacionada:
Península, Revista de estudos ibéricos n.° 5, 2008
Cronologia breve da Torre Velha (1 de 3)
Torre Velha por dom António
Alcântara (a batalha)

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