domingo, 3 de setembro de 2017

O palácio e o chafariz

Do palácio...

João de Castilho [mestre‑de‑obras do Mosteiro entre 1517 e 1522] construíra para sua moradia em terrenos dos frades jerónimos situados a oriente da capela‑mor, para lá da Ribeira dos Pocinhos, no local onde se viria a erguer o fatídico palácio do último duque de Aveiro. (1)

CHEGADA DA SUPREMA JUNTA DA INCONFIDENCIA AO SITIO DE BELEM PARA ARRAZAR E SALGAR O CHÃO DO PALÁCIO DE JOZÉ DE MASCARENHAS EXAUTORADO DAS HONRAS DE DUQUE DE ÁVEIRO PELLO EXACRANDO ATENTADO CONTRA A AUGUSTA MAGESTADE D'EL'REY D. JOZÉ I NOSSO SENHOR A QUEM DEOS GUARDE 1759 BERTOLAMEO DA COSTA O FEZ ANNO 86 V
Imagem: Isabel Mello e Castro

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Na procura de saber como de facto seria o palácio dos Duques de Aveiro em Belém, para além da informação que fomos recolhendo, socorremo-nos também de uma imagem, interessantíssima, divulgada pela nossa amiga Isabel de Mello e Castro que muito se interessa pelos assuntos ligados a Lisboa.

Veja-se a similaridade, e as diferenças, com uma outra que descartámos, no apontamento Palácio do Corpo Santo, e que abaixo voltamos a reproduzir, geralmente aceite como sendo do palácio dos duques de Aveiro.

Esta imagem, aqui horizontalmente invertida, é uma mistificação.
Baseada no original de Dirk Stoop de 1662, "O Palacio do Infante D Pedro em o Corpo Sancto em Lisboa" (v. a próxima imagem), foi, em 1707, invertida e publicada com figuras diferentes do original no primeiro plano e ao fundo, em Les delices de l'Espagne et du Portugal, tomo IV, em 1729 La galerie agréable du monde... ou em Annales d'Espagne et de Portugal, tomo III de Juan Alvares de Colmenar/Pieter Vander Aa.
Amplamente reproduzida e distribuída, durante mais de 80 anos, também a legenda foi adaptada aos acontecimentos que iam decorrendo.
Quando referente ao caso dos Távoras, em 1759, que foi divulgada pretendendo-se como representando o Palácio do Duque de Aveiro que seria depois arrasado.
A presente versão, "Palais du Comte d'Avero  á Lisbonne oú Charles III a été logé", é também um erro, pois Carlos III, de facto, esteve alojado no palácio dos condes de Aveiras, o actual Palácio de Belém.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Júlio de Castilho na sua obra, A ribeira de Lisboa, fala-nos  dos três palácios que o Duque de Aveiro possuia. Um no castelo, onde depois se fez o hospital dos soldados, outro no Largo da Esperança, em Santos-o-Velho, e o de Azeitão. 

Certo, o livro de Castilho trata a margem do Tejo desde Madre-de-Deus até Santos-o-Velho e, se, no entanto, menciona o palácio em Vila Nogueira de Azeitão, o de Belém não é referido.

O palácio em Vila Nogueira de Azeitão conheciamo-lo nós desde aquele passeio em landaulet pela Outra-banda, nos primeiros anos de 1900:

Brasier 16 20 HP de, landaulet de 1906.
Imagem: Delcampe

Nestas considerações nos levava o automóvel intruso, producto moço do engenho humano, e se internava, pesquizando o que o mundo tem de mais velho, com roncos d'um som inarticulavel com a sua mocidade, prevendo e prevenindo, arrogantemente, numa curva, algum viandante serrano, alheio ao progresso e despreoccupado.

O meu companheiro mandou parar. Estávamos em Azeitão.


Villa Nogueira (Azeitão), Antigo Palácio dos Duques de Aveiro.
Imagem:  Fundação Portimagem

Subimos alguns degraus, que dizem para o terreiro do velho palácio dos duques de Aveiro, com seu pelourinho. 

Uma hora de historia, de profundas recordações! Foi aqui preso, numa negra noite de novembro, D. José Mascarenhas, oitavo duque de Aveiro, decapitado no caes de Belém, no janeiro seguinte de 1759, como se sabe.

Lá está na fachada principal do palácio, sobre a janella predominante e central, arrasado, o escudo da nobre familia, que tinha o direito de nomear, senhores de baraço e cutello, e que, por implicada no attentado contra a vida de D. José I, Pombal tentou exterminar.

Na sala de baile e no guarnecimento de interessantes azulejos, talvez dos fins do século XVI, ha, num dos vãos, entre duas janellas, a falta de nove azulejos, que completavam a parte central da composição, onde presumo estaria, antes do sinistro espectáculo de Belém, o escudo a que alludi.

A caracteristica vivenda, que tem passado por differentes vicissitudes, pertence actualmente ao sr. Oliveira Boal, cujos filhos nos receberam com amabilidade e nos mostraram os azulejos d'aquella e das mais salas do histórico palácio.

in José Queiroz, Da minha terra: Figuras Gradas..., Lisboa, Imp. Libânio da Silva, 1909

v. O Archeologo Portuguez

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No despontar do século xviii, Belém usufruía, [...] de uma orgânica administrativa e económica própria à qual não era alheia a amplificação da sua orgânica social. A acrescentar aos já referidos, foram surgindo outros palácios e quintas na zona, na sua maioria casas de recreio da nobreza titular, inscritas numa nova dimensão social imposta pelo modelo barroco [...]

Vué du port & de l'église de Bellem & de celle de S. Amat cf.
Les delices de l'Espagne et du Portugal... Juan Alvarez de Colmenar, 1707, cf.
Vista  de Santo Amaro e Perspectiva do lugar de Bellem, Dirck Stoop, 1662.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os palácios pertencentes a estes titulares eram os seguintes: (1) Duques de Cadaval: palácio de Pedrouços, onde hoje está instalado o Instituto de Altos Estudos Militares. (2) Marqueses de Borba: situado do lado sul da Rua de Pedrouços, antes de chegar à quinta dos duques de Cadaval, demolido nos anos 60 do século xx. (3) Condes de Aveiras: palácio de Belém, ou quinta de baixo. (4) Condes da Calheta: palácio do Pátio das Vacas, ou quinta do meio. (5) Condes de Óbidos: palácio do Meirinho‑mor ou quinta de cima. (6) Condes de S. Lourenço/ Sabugosa: quinta da Praia, no local onde hoje se encontra o C.C.B. (7) Condes da Atalaia: casa do governador da torre. (8) Condes de Santa Cruz: casas que haviam sido de João de Castilho no local onde depois se ergueria o palácio do duque de Aveiro, arrasado em 1759 na sequência do processo de condenação dos presumíveis autores do atentado a D. José, no local onde hoje se encontra o padrão do chão salgado. (9) Correios‑mores: casa dos marqueses de Penafiel no Bom Sucesso.

Logo em 1756, para substituição da antiga Cadeia do Limoeiro que havia sido arruinada pelo terramoto, Pombal ordenou que se instalasse em Belém a Cadeia Principal, aproveitando‑se um velho edifício sito entre a Rua do Cais e os terrenos fronteiros ao palácio do duque de Aveiro. (2)

D. José Mascarenhas, que foi oitavo duque de Aveiro, quinto marquez de Gouveia, oitavo conde de Santa Cruz e mordomo-mór de el-rei D. João V e D. José I, sendo por este soberano condemnado á morte por attentar contra a sua vida na fatal noite de 3 de setembro de 1758. (3)

O palacio da residencia do Reo José de Mascaranhas duque de Aveiro, no sitio de Belem, com frente para a praça do chafariz, chamado da bolla, foi arrazado e salgado etc. (4)

Viaje de Cosme de Médicis por España y Portugal (1668-1669), Pier Maria Baldi.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Do chafariz...

A bula Inter Caetera, datada de 14 de Outubro de 1459, concedeu a confirmação canónica à ermida de Santa Maria de Belém no Restelo, atribuindo à nova paróquia uma área de jurisdição simbólica, delimitada por um círculo imaginário em seu redor, tendo por raio a distância de um tiro de besta. 

Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, Filipe Lobo, ass: Philippus Lupis Fecit 16--.
Imagem: Christie's

A fundação da nova capela incluiu também a instalação de um cano, chafariz e fonte para servir tanto a nova igreja como todas as embarcações que, ancoradas naquele porto, ali quisessem fazer aguada.

Mário Sampaio Ribeiro faz um apontamento curioso com relação a este trecho da carta de doação: levanta a possibilidade de a ideia comummente aceite de o infante ter mandando construir um chafariz e uma fonte ser fruto de uma má leitura do original, no qual se leria "ponte" em vez de "fonte", pois no seu entender a proximidade dos termos "chafariz" e "fonte faria da sua dupla menção um pleonasmo. Admitindo, assim, a hipótese de o documento se referir a uma ponte, essa seria a que atravessava a ribeira dos Pocinhos e cuja construção deve ter sido coeva da fundação da ermida. (5)

Luiz Moreira , e sua mulher Catharina Antunes, possuíam um serrado a que chamavam — das Figueiras — no sitio de Alcolena , aonde havia um charco d' agua, e o Senado lavrou com elles uma Escriptura em 28 de Abril de 1611, comprando-lhes a agua que ali se achasse, a qual depois seria medida, e paga a razão de 100$000 réis por cada anel; com a declaração de que não se achando agua, o terreno ficaria nivelado como dantes se achava, á custa do Senado; o qual tomou posse por authorisação dada a Francisco Tavares da Silveira, Vereador do Pelouro das Obras, em 17 de Maio do mesmo anno.

Belém, Grande Panorama de Lisboa Azulejo (detalhe), c. 1700.
A ponte da ribeira dos Pocinhos no grande painel de azulejos com o panorama da cidade, que celebra a Lisboa filipina.
Imagem: Flickr

Fizeram-se excavações, minas, duas arcas de agua, &c. e por um accordo entre o Prior, e mais Padres Deputados do Convento dos Jeronymos, em 11 de Julho de 1613, se deliberou — que o encanamento podesse passar pela sua Sachristia, deixando ali uma porção d' agua para o Lavatório, — o que assim se fez; e por ultimo, em 5 de Janeiro de 1617 se lavrou outra Escriptura, pela qual o dito Moreira, e sua mulher venderam ao Senado toda a agua ali achada, por 150$000 réis; de que houve segunda posse por com missão dada a Gaspar d'Abreu, em 13 do dito mez, e anno.

Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, Filipe Lobo, 1657, ass: Philippus Lupus fecit MDCLVII.
Imagem: MNAA

Com esta agua fez o Senado o Chafariz chamado — da Bolla — que em 1837 foi mudado para a ilharga da Capella Mor do dito extincto Convento.

Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, Dirck Stoop, c. 1660 - 1670, 1662.
Imagem: Mauristhuis Museum

Tendo esta agua diminuido mui consideravelmente, se abriram em 1830, mais adiante da nascente duas Clarasboias, e se encontraram de 3 a 4 pennas d'agua , que se podia encanar para a mina velha , no que se gastaram 169$163 réis; porém não se fez a obra, não obstante a grande falta d'agua que este Bairro experimentava; o que a Camara Municipal de Lisboa quiz evitar, deliberando em Sessão de 28 de Maio.de 1846, se fizessem as obras necessárias no sitio da nascente para acquisição de mais agua; e se edificasse um novo Chafariz no sitio do Chão Salgado.

Largo do Chafariz da Bola.
Alinhamento da Rua de Belém (detalhe), 1917.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Começaram-se os trabalhos no 1.° de Junho do mesmo anno, fazendo-se em continuação da mina antiga, mais 124 braças de mina nova; — reformaram-se 240 palmos do antigo encanamento; — e pelo Largo de Belém se fizeram mais 964 palmos até ao logar do Chafariz.

A - Memória madada erigir depois do atentado régio de 3 de setembro de 1758, no terreno denominado de "Chão Salgado" que o palácio, a quinta murada e o jardim do Duque de Aveiro ocuparam antes de virem a ser arrasados.
Linha vermelha - Periferia do Chão Salgado onde está comprehendido o actual Largo do Chafariz da Bola.
Preenchimento a vermelho - alácio do Duque de Aveiro José Mascarenhas antes de ser arrasado, segundo uma planta de 1717. 
Expropriações na Rua de Belém (detalhe), 1916.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No dito sitio do Chão Salgado se fizeram as expropriações precisas , para formar a boa Praça como agora se vê ; e finalmente , este bello Chafariz prompto, e acabado deitou a primeira agua aos 12 minutos depois do Meiodia, de 4 de Abril de 1848; á vista do grande concurso que para esse fim ali se achava; enchendo o primeiro barril um Criado do Sr. Domingos Fernandes , morador em frente do mesmo Chafariz, N.° 46; não apparecendo ali em todo o tempo que nos demorámos, nem o Capataz, nem um único Aguadeiro [...] (6)


(1) Isabel Corrêa da Silva, O Sítio de Belém
(2) Idem
(3) Historia de reinado de el-rei D. José e da administração do marquez de Pombal
(4) O Archeologo Português vol. 18
(5) Idem, ibidem
(6) Memoria sobre chafarizes, bicas, fontes, e poços públicos de Lisboa

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Archivo Pittoresco, Chafariz de Belém

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Paixão por Lisboa: Palácio do duque de Aveiro
Chafariz de Belém no desaparecido Largo Frei Heitor Pinto



Em Belem ha um sitio que durante muitos annos era apontado com horror. Referimo-nos ao Chão Salgado. Encontra-se na rua Direita de Belem, e lá mandou a camara, depois do meado do século XVIII, collocar uma memória, recordação de uma das mais atrozes vinganças do marquez de Pombal.

Entre o largo do chafariz e a travessa a Este, junto da calçada do Galvão, estava o palacio do duque de Aveiro, que occupava toda essa área. Alli mesmo é que foi collocada a ignóbil memória, depois de arrasado o prédio e salgado o terreno: uma columna cylindrica da altura de cinco metros, rematada em fórma de pyra, e rodeada de cinco anneis de pedra, symbolisando as cinco pessoas da familia do duque de Aveiro, que tomaram parte na conjuração contra D. José I.

No plynto da columna gravou-se o seguinte:

"Aqui foram arrasadas e salgadas as casas de José de Mascarenhas, exauctorado das honras de duque de Aveiro e de outras, condemnado por sentença proferida na suprema junta de inconfidência , em 12 de janeiro de 1759. Justiçado como um dos chefes do barbaro e execrando desacato que na noite de 3 de setembro de 1758 se havia commettido contra a real e sagrada pessoa de D. José I. N'esle terreno infame se não poderá edificar em tempo algum."

O attentado contra D. José é um problema para resolver. Sabem todos que Sebastião José de Carvalho e Mello era fidagal inimigo da nobreza, que lhe pagava na mesma moeda. Ancioso por dominar-lhe o poder e prestigio de que gosava ainda essa classe, não perdia ensejo de abatei a. E o mesmo com respeito aos jesuitas. Ora a conspiração de 3 de setembro forneceu-lhe tão bons meios de exercer a sua vingança que a gente fica a pensar se não andaria em todo esse desgraçado acontecimento alguma influencia machiavelica!

D. José andava, um pouco desviado do redil matrimonial, e na corte não era mysterio a sua predilecção pela formosa condessinha, filha dos Tavoras e mulher do conde de Atouguia. A rainha vivia desgostosa, os Tavoras envergonhados, e o marido, sem duvida, revoltado. Nada seria de espantar que os interessados tirassem partido da situação.

Emfim, D. Jose sahiu da quinta real da calçada do Galvão na noite de 3 de setembro de: em coche [sege], acompanhado do seu creado particular e confidente Pedro Ferreira. A pouca distancia, num campo, onde está a egreja da Memoria. dispararam-lhe alguns tiros de bacamarte sobre o trem [a liteira]. Eram pelos modos tres os assaltantes, mas um errou fogo, e todos creados do duque de Aveiro e do marquez de Tavora. O coche ficou furado [A sege ficou furada], mas el-rei so recebeu um ferimento no braço esquerdo.

Voltou o trem para a Junqueira, e assim ficou sem effeito o segundo attentado que devia dar-se mais adiante, na previsão de mau exito do primeiro. Não pnmavam em tactica os conspiradores, porquanto lhes não occorreu a idea branca de que el-rei poderia retroceder, visto ser mais seguro voltar ao ponto de onde partira. El rei foi para a Junqueira e recolheu a casa do marquez de Anjeja, que habitava o antigo forte, e lá recebeu curativo, depois do que regressou ao paço. No dia immediato sabia se do caso em toda a Lisboa, e. corriam boatos insistentes de que os auctores tinham sido os Tavoras. Quem os espalharia?

As intrigas da côrte não chegavam ao conhecimento do povo, e os nobres mais depressa tomariam a defeza, do velho marquez do que se poriam ao lado do ministro que odiavam. O marquez de Tavora correu logo de manhã ao. paço afim de apresentar os seus sentimentos a el-rei, e prestou se a procurar os auctores do regicídio frustrado, mas o marquez, que o recebeu bypocritamente, recommendou-lhe que não desse passo em tal ca minho porque a rainha attribuía o caso a questão de infediiidade, e era necessario não produzir escandalo, ...Chama-se a isto revolver o punhal da afironta com a frieza de um operador cirúrgico.

O marquez de Pombal procedeu se cretamente; deixou sahir o duque de Aveiro com a família para o seu palacio de Azeitão, e não deu signal de proceder contra quem quer que fosse. Tres mezes e dez dias se passaram sem que os desgraçados sonhassem no horrível fim que o ministro de D. José lhes preparava. madrugada de 13 de dezembro foram cercadas as habitações de todos os membros da familia dos Tavoras, conde de Atouguia, marquezes de Lorna, condes de Óbidos, condes da Ribeira, do Calhariz, desembargador Antonio da Costa Freire, de outros fidalgos, e bem assim todas as casas dos jesuítas.

Os ministros dirigiam o movimento, e prenderam os fidalgos, esposas e filhos, e todos os creados que eram indicados na lista. O marquez de Tavora, honrado e respeitabilíssimo ancião, sabia de um baile em casa de uma aristocratica familia ingleza, e informado do movimento de tropas correu ao paço a queixar-se da indisciplina, porquanto era elle o inspector de cavallaria.

Ali foi preso pelo marquez de Pombal, e entregue ao conde de Soure e a D. Luiz da Cunha, que o conduziram á quinta dos Bichos, quinta de Belem, cuja porta defrontava com o caes, e onde estavam já seus fiihos e genros, incommunicaveis e guardados á vista.

Na manhã d’este mesmo dia appareceram as paredes das pra- ças e principaes ruas de Lisboa cobertas de grandes cartazes narrando o attentado, e declarando que o coche destruído pelos tiros estava patente ao publico na cocheira do paço.

Promettia com prodigalidade dinheiro, honras, titulos, postos, uma aluvião de prêmios tentadores a quem delatasse o que soubesse a tal respeito; e até promettia o perdão a todos os cúmplices secundários que se promptificassem a depôr.

Era um luxo de velhacaria... O fio do trama estava em boas mãos, talvez nas próprias que lhe forneceram a matéria prima!

Acompanhava este edital um outro prohibindo a todos os portuguezes, residentes no reino, que d'elle sahissem, mesmo que fosse da terra do seu domicilio, sem provarem a sua identidade perante o ministro ad hoc, o qual só lhes concederia licença depois de rigorosíssimo exame, com todas as declarações de signaes phisionomicos, fins e dias de ausência.

A marqueza de Tavora velha foi presa para o mosteiro das Grillas; a marqueza nova para Santos; a marqueza de Alorna para Chellas; a duqueza de Aveiro para o Rato, e a condessinha de Atouguia para a Magdalena.

Todas as filhas e filhos menores d'estas desventuradas senhoras toram distribuídos por conventos e collegios, com ordem de serem tratados como plebeus, e privados de relações externas, não tornando a ver suas mães e irmãos!

Que cumulo de selvageria!... Apenas o conde de Villa Nova foi excluído da odiosa vingança, porque estava nas boas graças do marquez de Pombal. Teve, porém, de despedir todo o pessoal do seu serviço, porque tinha servido seu pae, o desgraçado marquez de Tavora. D. Manuel despediu tudo, e no mesmo dia tomou creados novos

Não é sympathica a sua attitude, nem se pode louvar a sua condescendência em troca de uma vida que ficava infamada pela condemnação de todos os seus...

De que massa seria feito o coração d'esse homem para não estalar de dôr perante a martyrio de seus velhos paes, e de gentilíssimos mancebos que a compaixão humana ficou lamentando.

A casa dos Vinte e Quatro e o juiz do povo representaram a el-rei o seu sentimento, e pediram que, os réus fossem desnaturalisados, e que contra elles fosse admittida toda a qualidade de prova, afim de serem castigados sem misericórdia.

Isto era gente do povo... nem sabemos como estes humanitários varões se esqueceram de celebrar com Te Deums os morticínios do Porto, por occasião da revolta contra a companhia real dos vinhos do Alto Douro!

Elle o grande ministro não precisava da approvação da casa dos Vinte e Quatro, nem procedia por suggestões do juiz do povo. Juiz unico se considerava elle, e por sua deliberada actividade se fez processo, provas, condemnação, tudo a vapor e sem necessidade de interrogar cs accusados nem citar testemunhas.

O horror d’estas execuções, que não teem similares na historia moderna, e que foram muito além dos horrorosos supplicios da edade média, nem se descreve. Foi escolhida a madrugada de 13 de janeiro de 1759 para a carnificina. 

A marqueza de Tavora (D. Leonor), seu esposo, velho general que na índia, quando governador, se houve heroicamente, bem como a nobre senhora, Luiz Bernardo de Tavora e José Maria de Tavora, filhos dos marquezes, ambos bellos, na flor da mocidade, aureoladas de longos e annellados cabellos louros, illuminados de ideaes brilhantes, e sem crimes nem maus sentimentos, o conde da Athouguia, o duque de Aveiro, Manuel Alves Ferreira, guarda roupa do duque. um cabo de esquadra ás ordens do joven marquez Luiz Bernardo de Tavora, cujo nome era Braz José Romeiro, João Miguel. moço de acompanhar o duque, e Antonio Alvares, todas essas victimas do odio mais cruel que póde conceber-se, foram torturados ultra-horrivelmente, despedaçados, queimados e lançados ao Tejo depois de reduzidos a cinerarios destroços.

Serviu de oratorio a quinta dos Bichos.

Só perto das cinco horas acabaram os algozes a sua infamissima tarefa. Trabalharam á lufa-lufa desde o raiar da luz matinal.

A salga do terreno occupado antes pelo palacio do riquíssimo duque de Aveiro tinha em vista impedir que ali se désse qualquer plantação de futuro. Seus bens e os dos Tavoras passaram para a fazenda real. O dinheiro e boas propriedades não estavam incursas nos anáthemas régios...

D'este mesmo sitio partiram cs jesuítas expulsos de Portugal por decreto de 3 de setemhro do mesmo anno, anniversario do attentado. Também foi ponto de reunião da familia real, comitiva de D. Maria I e príncipe regente D. João VI, quando fugiram a toda a pressa para o Rio de Janeiro, pela entrada do exercito francez em Portugal. (1)


(1) Angelina Vidal, Lisboa antiga e Lisboa moderna

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