terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Para além do pátio da escola de Bellas-Artes

Depois, planeada a reedificação da cidade, fixou-se o novo local onde devia fazer-se a definitiva reconstrução da paróquia de S. Julião, sendo designado o chão onde estivera a antiga Igreja Patriarcal, desbaratada também pelo terremoto. e que fora antes o chamado sítio da Judiaria Nova ou Pequena. 

Lisboa, vista tomada do Largo da Academia das Belas Artes, 2017.
Imagem: Eventualmente Lisboa e o Tejo

O terreno escolhido pelos engenheiros de Pombal ficou delimitado a poente pelo largo de S. Julião, a norte pela rua do mesmo nome e do lado sul pela Rua Nova de El-Rei. 

Dirigiu as obras, o arquitecto Honorato José Correia, o mesmo que levantou a planta geral da cidade em 1785. 


Plano Geral da CIdade de Lisboa, Honorato José Correia, 1785.
Imagem: WDL

Em 1778, ainda a nova igreja, já com paredes, estava em menos de metade, assim o garante o citado frade franciscano António Sacramenco, que encerra a informação, opinando: "será preciosa, mas escura". 

Pouco tempo depois, em 1783, um relatório enviado à rainha D. Maria I deixava transparecer melhores perspectivas: "A nova Igreja está feita até à Simalha; para se acabar o que falta, segundo a avaliação dos mestres, são necessários mais de Sincoenta mil Cruzados  [...]"

Aproveitaram-se alguns materiais do demolido Convento de S. Francisco, principalmente o retábulo e as duas colunas do altar-mor, esculpidas em mármore do Tojal.

Academia de Bellas Artes e Biblioteca Pública, J. Novaes Jr., c 1900.
Imagem: Internet Archive

Por conter certo interesse, transcrevemos este apontamento, tomado por amor desconhecido, num canhenho manuscrito, datado de 1837: "A Estátua equestre da Praça do Commercio de Lisboa foi fundida com o bronze de um grande sino da egreja de S. Julião d'esta Cidade, o qual tinha cahido pelo Terramoto de 1755; e ainda ha memoria de um Çapateiro que estabeleceu sua loja, e trabalhava dentro deste sino."

Pela inauguração da Estatua appareceu um pasquim, que dizia:

Já Fui sino, fui badalo,
Hoje sou Rei, sou Cavallo.

Monumento a D José I, J. Novaes Jr., c 1900.
Imagem: Internet Archive

A tais instrumentos, de timbre mavioso, que os Anios ouvem no Céu, rendeu Júlio de Castilho [em maio de 1884] uma comovida homenagem, em verso. Aqui ficam a primeira e a última estâncias:

Não sei dizer que saudades
me acordam no coração
Aquelas vozes de prata

dos sinos de São Gião.
...

Lisboa, vista tomada do Largo da Academia das Belas Artes, 2017.
Imagem: Eventualmente Lisboa e o Tejo

Oh! campanário bendito! 
Quanto te deve a minh'alma 
ninguém o sabe, nem eu; 
mas sei que sabes falar-me 
numa linguagem do Céu; 

Pátio da Escola de Belas Artes de Lisboa, António Ramalho, 1880
(descobre-se parcialmete o cimo da torre da igreja de S. Julião).
Imagem: MNSR

e que ao vir de longes terras,
das ilhas de além do mar,
e ao subir o Tejo um dia,
debruçado na amurada,
o que eu entre tudo ouvia
era, por longe, esfumada
como as brumas da amplidão
entre o rumor da Ribeira,
e o retroar da cidade,
a voz minha companheira,
a voz toda ela saudade
a voz sabida e caseira
dos sinos de São Gião. (1)


(1) Mário Costa, A igreja de S. Julião... (II), Revista Municipal n.° 89, Lisboa, 1961

Alguma leitura relacionada:
Mário Costa, A igreja de S. Julião... (I), Revista Municipal n.° 88, Lisboa, 1961
belas-artes, ulisboa, história e fotografias

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O atelier do pátio da escola de Bellas-Artes

Nesta pequena composição [António Ramalho (1859-1916)] utiliza uma estreita faixa de casario existente no pátio do Museu da Academia de Belas-Artes, nas traseiras desta instituição.

Pátio da Escola de Belas Artes de Lisboa, António Ramalho, 1880
(descobre-se parcialmete o cimo da torre da igreja de S. Julião).
Imagem: MNSR

À esquerda, perfila-se parte da modesta construção que servia de atelier a Silva Porto (1850-1893) e que, anos mais tarde, após a morte do mestre, haveria de "herdar" [...]

Imagem: MNSR

Uma fotografia tirada no mesmo local, anos mais tarde (em baixo),  permite-nos observar como o sítio era na realidade e compreender como foi transformado na visão do pintor [...]

O pintor António Ramalho no atelier da escola de Belas Artes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O trabalho com o pincel, em pequenas manchas, permitiu-lhe fazer sobressair o efeito visual da luz intensa sobre as velhas paredes gastas dos edifícios da cidade.

O pintor António Ramalho no atelier da escola de Belas Artes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Esse tema assim como o da distribuição das cores complementares das portadas, definindo e harmonizando as duas metades verticais da composição, transformam-se, desta forma, no verdadeiro tema pictórico desta pequena obra.

O pintor António Ramalho à porta do atelier e a vista do pátio pintada por este em 1880.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No entanto, não resiste a introduzir uma pequena figura humana, sentada na soleira da porta, o que vem elucidar sobre a verdadeira natureza evocativa do local e, portanto, sobre a intenção naturalista das suas preocupações. (1)


(1) Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004

Informação relacionada:
Ramalho Júnior, António Monteiro
Objectos listados em matriznet

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O grande castanheiro

A natureza que, após o século XVI, só, de Annunciaçâo para cá, começou a ser vista, em Portugal, com alguma verdade, evolucionando desde então até triumphar, por completo, em Silva Porto e nos seus companheiros e continuadores: Marques d'O1iveira, Arthur Loureiro, Ramalho. Malhoa, Vaz, Luciano Freire e Carlos Reis,

Carlos Reis no seu atelier, Joshua Benoliel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

trouxe á arte muitos elementos caracteristicos que escapavam ao que, até ahi, era quasi exclusivo assumpto dos nossos artistas.

Carlos Reis no seu atelier, Joshua Benoliel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A vida do campo com os seus costumes, o seu trajar ainda tradiccional e típico, e as suas figuras do interior ou da beira-mar, tão cheias de caracter e reveladoras da raça, veio dar-lhes uma mais profunda verdade e um maior conhecimento dos nossos verdadeiros elementos de constituição.

Carlos Reis no seu atelier, Joshua Benoliel.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A luz, variável com a região, a architectura dos terrenos differenciada de provincia para província, tudo isso veio enriquecer o filão em que trabalham, com coragem, os que consideram o movimento artistico de hoje como um estádio já relativamente brilhante, mas ainda passageiro, na nossa evolução artistica. (1)

O grande castanheiro ou A feira, Carlos Reis, 1910.
Imagem: MNAC


(1) Catallogo Illustrado, Exposição Nacional no Rio de Janeiro, Secção Portuguesa de Bellas Artes, Lisboa, A Editora, 1908

Leitura relacionada:
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), Lisboa , Livraria Ferin, 1898
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (III), Lisboa, Livraria Ferin, 1903

Carlos Reis: google search

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Obras maiores de João Pedroso Gomes da Silva (1825 - 1890)

Os principais navios desse programa [programas navais dos ministros Sá da Bandeira e Mendes Leal, a partir de 1858]: as corvetas mistas Bartolomeu Dias, Sagres e Estefânia, construídos em Inglaterra, foram todos "retratados" em pintura e em gravura, por João Pedroso. As corvetas, Duque de Palmela e Sá da Bandeira, dois dos navios desse programa, construídos no Arsenal da Marinha de Lisboa, também foram alvo da atenção do artista.

Chegada a Lisboa de S.M. Maria Pia de Sabóia, João Pedroso, 1862.
Imagem: As corvetas mistas na obra de João Pedroso, Revista da Armada

Este quadro retrata a “Chegada a Lisboa de S.M. Maria Pia de Saboia” a 5 de Outubro de 1862 duma frota portuguesa (constituída pelas corvetas Bartolomeu Dias, Sagres e Estefânia, após uma viagem realizada desde Génova em companhia de navios de guerra italianos.

Aliás, esta pintura constitui uma das três obras monumentais de João Pedroso que se encontram no Palácio da Ajuda,

Chegada a Lisboa da Rainha Dona Estefânia a bordo da corveta Bartolomeu Dias, João Pedroso, 1862.
Imagem: Revista da Armada, Agosto de 2008

As duas outras obras, igualmente de grandes dimensões têm por temas, respectivamente: "A Chegada a Lisboa da Rainha Dona Estefânia" (quadro pintado retrospectivamente) e a "Partida para França da Família Real em 1865". Nesses dois quadros são também reconhecíveis as corvetas Bartolomeu Dias, Estefânia e Sagres. 

Partida para França da Família Real, João Pedroso, 1865.
Imagem: Revista da Armada, Abril de 2014

A pintura desses três acontecimentos históricos marcantes (vulgo "pintura histórica") foi encomendada a Pedroso pelo Rei Dom Luís. O conjunto destas obras contribuiu seguramente para confortar o successo e a carreira comercial do pintor, nomeadamente nos Salões da Sociedade Promotora de Belas Artes de Lisboa, onde expunha. (1)


(1) Paulo da Silva Santos, A revolução industrial, Lisboa marítima e a Marinha de Guerra na obra de João Pedroso, 2014

Tema:
João Pedroso

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Le Portugais, Georges Braque, 1911

Braque afirmou que o tema representa um músico que tinha visto num bar em Marselha. (1)

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
Imagem: WikiArt

Na parte superior da pintura intitulada Le Portugais (Kunstmuseum, Basel) Braque imprimiu a stencil as letras BAL, e abaixo destas alguns números [...]

"como parte do desejo de chegar tão perto quanto possível de uma certa espécie de realidade, em 1911 introduzi letras nas minhas pinturas", tinha dito Braque, mas as implicações são mais extensas [...]

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
Imagens: WikiArt; Wikipédia

"são formas que não poderiam ser distorcidas; porque sendo planas, as letras existiam fora do espaço e a sua presença na pintura, por contraste, permitia distinguir entre os objectos situados no espaço e os outros fora dele."

Por outras palavras, Braque efectivamente diz "a minha imagem é um objecto, uma superfície plana, e as sensações espaciais que evoca são o espaço do pintor que tem a intenção de informar e não de decepcionar." [...]

Então, em Le Portugais, as letras têm um valor puramente composicional, fornecendo uma nota terminal para um sistema de elementos horizontais ascendentes [...]

O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
Le Portugais, Georges Braque, 1911.
Imagens: Wikipédia; WikiArt

Agora, a introducção de elementos de realidade, como as letras e os números impressos em Le Portugais, afirma claramente a existência material da pintura como um objecto de direito próprio [...]


Então as letras impressas em Le Portugais de Braque e as palavras ou títulos escritos sobre as suas pinturas, ou de Picasso, são em certo sentido chaves para a reconstrução do tema. Mas estas chaves ou pistas não serviram apenas para tornar a pintura mais legível; foram também elementos de realidade, que como Braque explicou, não podiam sofrer distorção pictórica. (2)


(1) John Golding, Cubism. A History And An Analysis 1907-1914
(2) John Golding, Idem

Leitura relacionada:
Daniel-Henry Kahnweiler, Rise of cubism

Outras impressões:
William Cloonan, Braque's Le Portugais and a Portuguese Nun